Na
sequência do surto da pandemia Covid-19, uma evidência particular começou
subitamente a surgir nos documentos e nos debates políticos da UE, bem como em
programas de conferências e de investigação no domínio da segurança e da saúde
no trabalho (SST): a da importante ligação entre a Segurança e Saúde no Trabalho
e a Saúde Pública (SP).
O
conceito surge, em particular, no que se refere ao objetivo de "maior
preparação para potenciais crises futuras de saúde", conforme delineado no
Quadro Estratégico da UE para a Saúde e Segurança no Trabalho 2021-2027. Neste
contexto, a Comissão Europeia defende que "devem ser desenvolvidas
sinergias entre a SST e a saúde pública".
No
mandato atribuído ao Grupo de Trabalho instalado pelo Tripartido Comité
Consultivo para a Segurança e Saúde (ACSH) da Comissão Europeia para a
realização desta tarefa, faz-se referência à "evidente interação entre a SST
e a SP".
No
entanto, em nenhum dos documentos mencionados se encontra presente esta ligação
aparentemente "evidente”, nem existe qualquer clareza sobre a forma como
tais "sinergias" devem ser promovidas. E, talvez o mais notável, a
literatura académica sobre o tema também não nos dá muito conteúdo sobre este
conceito de interligação entre os dois domínios. Por conseguinte, não é de
estranhar que, em conferências internacionais e a nível da UE, o tema apareça
sob a forma de "um domínio em exploração".
Sendo
assim, neste documento estão alguns pensamentos iniciais para ajudar a levar
esta exploração um pouco mais longe, começando com algumas perguntas-chave.
- O
que queremos dizer quando falamos sobre a ligação entre a SST e o SP?
- E
que medidas devem ser tomadas para aumentar a sinergia entre os dois domínios?
A
base: um claro nexo de causalidade
O
termo "saúde pública" refere-se à saúde da população como um todo,
especialmente como tema de regulação governamental e apoio. O termo também é
usado para se referir ao ramo da ciência médica que lida com a saúde pública.
A SST
refere-se, entretanto, à segurança e à saúde dos trabalhadores, nomeadamente
como objeto de medidas preventivas e de proteção que são implementadas pelos
empregadores e com base na regulamentação governamental.
Estas
definições básicas apontam para a evidente ligação causal entre os dois
domínios: a saúde profissional é um determinante importante da saúde pública,
pois o trabalho pode ser e, infelizmente, muitas vezes é uma causa de doenças.
Por outras palavras, o trabalho, a exposição aos riscos profissionais e as
condições de trabalho são fatores essenciais para a compreensão da saúde da
população.
Os
cidadãos e os trabalhadores são as mesmas pessoas: se trabalharem em más
condições que afetam a sua saúde, isso terá evidência nas estatísticas de saúde
pública através do aumento das taxas de doença. No entanto, por mais óbvio que
isto possa parecer, o trabalho dificilmente é tido em conta como um fator
causal nos dados da saúde pública.
Estes
dados consideram elementos comportamentais individuais, tais como o tabagismo,
o abuso de álcool e as dietas pouco saudáveis, tendo um menor peso os “fatores coletivos”.
A
pandemia Covid-19 tem sido uma chamada de atenção, pois tornou-se claro, sem
qualquer dúvida, que o trabalho é um vetor chave na propagação do vírus.
É
aqui que a pandemia Covid-19 tem sido uma chamada de atenção, pois tornou-se
claro, sem qualquer dúvida, que o trabalho é um vetor fundamental na propagação
do vírus, com trabalhadores em muitos setores e profissões em grande risco de
contaminação.
Enquanto
em tempos normais os riscos profissionais e as doenças que ocorrem como
resultado deles, tais como as doenças respiratórias, o cancro ou a depressão,
geralmente permanecem invisíveis – apenas um problema para as vítimas lidarem –
desta vez, ficar doente no trabalho devido ao Covid-19 é uma questão de grande
interesse público.
A
contaminação no local de trabalho prejudicou a continuação de serviços
essenciais como os cuidados de saúde e os transportes públicos e criou um risco
para a saúde da população em geral – pensem, por exemplo, nos trabalhadores que
processam carne e que foram colocados em quarentena, para evitar que infetassem
outros, após um grande número deles terem sido infetados.
A
pandemia Covid-19 tem, por outras palavras, “iluminado” os riscos para a saúde
ocupacional e, mais do que isso, apresentou uma janela de oportunidade para
agir.
A
(falta) ligação entre a SST e o SP nos dados de saúde e nos cuidados de saúde
Uma
vez que, até agora, as causas profissionais das doenças quase nunca foram tidas
em conta, quer nos sistemas de vigilância e registo de saúde pública, quer nos
dados que deles resultam, mantiveram-se em grande parte invisíveis. Além disso
– ou talvez possamos dizer em grande medida como resultado desta invisibilidade
– os profissionais de saúde também parecem ter um ponto cego no que toca ao
trabalho.
Vamos
dar um exemplo simples e hipotético para ilustrar quais podem ser as
consequências desta situação. Imagine que um pintor vai ver o seu médico. Tem
sofrido dores de cabeça regulares (especialmente até ao final da semana),
incidências de desmaios no trabalho (os colegas mentem-no num colchão e depois
quando acorda continua a trabalhar), e ultimamente tem cada vez mais
dificuldades com a memória.
A
mulher queixa-se que tem tido comportamentos agressivos inesperados que lhe são
completamente estranhos. O médico não pergunta ao seu paciente que tipo de
trabalho faz e prescreve-lhe algumas semanas de descanso, e depois disso, o
pintor regressa ao seu trabalho, onde – o que teria sido óbvio para qualquer
perito de SST – a exposição aos solventes na pintura com que trabalha são a
causa das suas queixas de saúde.
O
pintor passa por vários destes ciclos de trabalho e prescreve-lhe apenas
descanso até que, finalmente, a sua mulher lê algo sobre síndrome
psico-orgânica (POS), ou "doença dos pintores", na revista do
sindicato, e reconhece os sintomas. Nessa altura, porém, já é tarde demais para
reverter a doença e o pintor com um dano bastante severo na sua saúde para o
resto da vida.
Se
os sistemas de vigilância e registo sanitário incluíssem a SST como um possível
fator causal, à semelhança de fatores comportamentais individuais como o
tabagismo, o abuso do álcool e as dietas pouco saudáveis, seriam mais
adequadamente capazes de explicar as causas das doenças e das desigualdades na
saúde da população em toda a sua complexidade.
Um
bom exemplo aqui são os sistemas de registo do cancro. Se estes incluíssem um
historial de trabalho dos doentes, obteríamos uma imagem muito mais clara sobre
até que ponto os agentes cancerígenos e mutagénicos no trabalho são
responsáveis por (determinados) cancros na população em geral.
Isto
ajudaria a reforçar o caso de serem encetadas mais medidas de prevenção do
cancro no trabalho. Além disso, sensibilizaria os médicos para as possíveis
causas profissionais das doenças, o que, por sua vez, contribuiria também para
a prevenção.
Estabelecer
a ligação no âmbito da governação da saúde
As
decisões relativas à saúde são tomadas em grande medida com base em provas de
saúde pública em que, mais uma vez, a SST é um ponto cego. Isto foi claramente
demonstrado no processo de classificação do vírus Covid-19 no contexto da
Diretiva dos Agentes Biológicos.
Um
painel completamente composto por especialistas em saúde pública analisou
apenas a taxa de mortalidade da doença, ignorando totalmente tanto a contagiosa
como as condições de trabalho como fatores.
Para
os peritos em SST, ficou claro desde o início, que as condições de trabalho
continham um risco incorporado de multiplicar o contágio, tanto devido às caraterísticas
intrínsecas de vários tipos de trabalho (por exemplo, contactos
cliente/paciente, proximidade com colegas de trabalho, impossibilidade de
aplicar regras higiénicas básicas, baixas temperaturas, etc.) como devido a
alguns fatores relacionados com o trabalho (como viagens para o trabalho em
transportes públicos embalados ou condições de habitação precárias, com muitas
pessoas vivendo nas proximidades).
Mas
os peritos da SST não estiveram envolvidos no processo de classificação. Como
consequência, o Covid-19 não acabou na categoria de maior risco (4), mas na
abaixo dessa (3), apesar de já ter matado muito mais pessoas do que, por
exemplo, o Ébola, que está na categoria de maior risco.
Isto
só pode levar à conclusão de que os peritos da SST devem ser incluídos nos
processos de tomada de decisão sobre questões de saúde pública. Incluí-las como
partes interessadas importantes seria, no mínimo, apenas uma boa governação. Um
elemento a não esquecer aqui é a experiência dos próprios trabalhadores. O
trabalho que é implementado na prática é muitas vezes muito diferente do
trabalho, pois é projetado – uma visão bem conhecida dos ergonomistas.
Muitas
vezes, os trabalhadores não são apenas os melhores, mas também os únicos
peritos que podem reportar os riscos de SST num contexto de trabalho
específico.
Uma
pergunta final: há algum inconveniente em integrar o conhecimento da segurança
e da saúde no trabalho nos registos, dados e práticas de saúde pública, bem
como na sua governação? Bem, talvez apenas uma nota de prudência: a SST deve
continuar a ser um campo de competências e de definição de políticas
independentes e independentes. O seu foco deve manter-se no domínio do trabalho
e na sua governação sob o guarda-chuva da política de emprego, onde é
imperativo que as instituições e os órgãos consultivos e de negociação
dedicados à SST sejam mantidos.
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